Matheus filho do Aldair da Codive Valinhos
Após perder a mãe, jovem se dedica aos estudos para processar luto e é aprovado em medicina na USP e na Unesp
Negro e ex-aluno de escola pública, Matheus Garbelim concorreu a uma vaga pela política de cotas. Contato com ambiente hospitalar durante tratamento da mãe motivou que escolhesse medicina como carreira.
Matheus Garbelim, de 22 anos, aprendeu nas aulas de literatura o que significa “epifania”: a sensação repentina de entender o mundo. “Quando minha mãe foi enterrada, ao ver o rapaz jogar terra sobre o caixão dela, minha vida mudou. Decidi que queria deixar de ser um aluno problemático e passar a estudar”, conta. “Foi o jeito de preencher aquele vazio.”
Cinco anos após a morte da mãe, Matheus foi aprovado em medicina na Universidade de São Paulo (USP), tanto no campus da capital paulista, pelo Sistema de Seleção Unificada (Siso), quanto no de Bauru, pela Fuvest; e na Universidade Estadual Paulista (Unesp). Ele ainda aguarda os resultados de outras três instituições de ensino.
Por ser negro e ter cursado o ensino médio em um colégio estadual de Campinas (SP), o jovem pôde concorrer às vagas reservadas para autodeclarados pretos, pardos ou indígenas que, independentemente da renda, tenham cursado integralmente os últimos anos escolares em colégios públicos. Ele escolheu se matricular na USP de São Paulo – pela localização e por ser “a melhor do país”.
Perder a mãe fez com que Matheus deixasse de ser o aluno relapso, que faltava às aulas com frequência e que não se interessava pelos estudos. “No meu colégio, faltava papel higiênico. Os profissionais eram esforçados, mas não havia estrutura para trabalharem. Eu sabia que, para passar no vestibular, precisaria procurar apoio extra”, conta.
No terceiro ano do ensino médio, vivendo o início do luto, o jovem começou a estudar biotecnologia. Em seguida, matriculou-se em um curso preparatório da Unicamp, no qual os mais bem avaliados durante os dois anos de aulas são premiados com uma vaga na universidade. Seu desempenho, no entanto, foi insuficiente para o curso de medicina. Mais dois anos de cursinho pré-vestibular, com bolsa de estudos, e Matheus viu seu nome na lista de aprovados.
“Não acredito ainda, porque a USP sempre foi meu sonho. São tantas derrotas que a gente fica cético.”
Por que medicina? Pela mãe
A mãe de Matheus foi diagnosticada com melanoma, o tipo mais grave de câncer de pele. Foram quatro anos de tratamento. “Nos últimos seis meses, a situação piorou, porque descobrimos que era um caso terminal, não tinha mais jeito”, diz. “Houve metástase cerebral, afetando os movimentos de coordenação motora fina e as capacidades de respiração e de comunicação.”
Durante um mês de internação, Matheus deu banho na mãe e acompanhou o trabalho da equipe médica do Sistema Único de Saúde (SUS).
“O ambiente hospitalar é tido como o lugar onde você vai viver os piores momentos da sua vida. Mas eu só conseguia pensar na importância do tratamento humanizado e da existência de um serviço público de saúde. Fiquei fascinado. Foi o que me fez escolher medicina”, conta.
Mas a escolha da carreira não foi uma decisão simples. Matheus relata que enfrentou um processo de aceitação: ele mesmo não entendia que um jovem negro poderia ser médico. “Não é a profissão que estruturalmente a sociedade me designaria. Acho que era um preconceito comigo mesmo, talvez pela falta de representatividade. Mesmo no cursinho, eram poucos negros”, diz. “Sofri e sei que vou sofrer no ambiente acadêmico. Mas tentarei tornar uma questão menor.”
Ele defende a política de cotas. Diz que não dá, no Brasil, para dissociar a desigualdade social da racial. “É uma tentativa de diminuir a discrepância nas condições de acesso ao ensino superior”, afirma.
Ansiedade com problemas no Enem
Matheus não foi afetado pelo erro na correção do Enem, mas lamentou a falha e relatou que o atraso na divulgação dos resultados do Sisu o deixou ansioso. “Acredito que o maior exame do pais tenha sido posto em xeque. Fico apreensivo, porque não sei se todos os candidatos receberam um tratamento justo. Não dá só para eu ficar feliz com a minha aprovação; todo mundo deve ter as mesmas chances”, diz.
Quando pôde consultar a lista de aprovados, comemorou com o seu pai, mecânico, e com a irmã, de 17 anos. Mas, antes de contar para a família, lembrou-se da mãe. “Não acredito em vida após a morte, mas ela acreditava. Espero que esteja vendo meus resultados. Só ela achava que eu conseguiria me tornar médico um dia.”